Murakami te aconselha sobre como começar sua coleção de jazz

O eterno candidato ao Prêmio Nobel de Literatura demonstra sua paixão pelo jazz em um belo livro, no qual suas memórias sobre esse gênero musical são acompanhadas pelas pinturas do artista Makoto Wada.

Em 1963, Art Blakey & The Jazz Messengers iniciaram uma turnê pelo Japão. Uma das paradas foi Kobe, cidade onde Haruki Murakami cursava o ensino médio. Naquela época, o escritor japonês ainda não conhecia o jazz, mas, por alguma razão inexplicável, sentiu curiosidade e decidiu comprar um ingresso para o show. Para alguém como Murakami, que até então ouvia apenas rock no rádio, a apresentação de Blakey – acompanhado por lendas como Wayne Shorter, Cedar Walton, Reggie Workman, Freddie Hubbard e Curtis Fuller – foi uma experiência de “complexidade extraordinária”.

“Havia duas músicas que eu já conhecia: It’s Only a Paper Moon e Three Blind Mice, mas a maneira como foram interpretadas pelos Jazz Messengers era muito diferente das versões originais”, recorda Murakami. “Não entendia por que motivo distorciam, alongavam e comprimiam as melodias daquela forma tão peculiar. Qual era a necessidade disso? A ideia de improvisação me era completamente estranha.” No entanto, apesar da confusão inicial, o concerto despertou algo dentro dele: “Não compreendo bem o que estou ouvindo, mas é uma forma de arte cheia de novas possibilidades.” Quando saiu da apresentação, Murakami foi direto a uma loja e comprou seu primeiro disco de Art Blakey: Les Liaisons Dangereuses, trilha sonora que o músico americano compôs para o filme de Roger Vadim, estrelado por Jeanne Moreau.

A partir desse momento, o escritor mergulhou no mundo do jazz. Além de comparecer a novos concertos e montar uma vasta coleção de discos – que hoje soma milhares de vinis –, passou a frequentar bares especializados nesse estilo musical. Mas não apenas como cliente: trabalhou em alguns e até se tornou dono de um. Na década de 1970, Murakami e sua esposa, Yoko Takahashi, abriram o Peter Cat, um pequeno clube no bairro de Kokubunji, perto da estação de Sendagaya, em Tóquio. O espaço era aconchegante – “o suficiente para caber um piano de cauda e um quinteto” –, e, segundo o escritor, “durante o dia servíamos café e, à noite, o local se transformava em um bar. Também oferecíamos alguns petiscos e, nos fins de semana, havia apresentações ao vivo. Como esse tipo de estabelecimento ainda era incomum na época, atraíamos muitos clientes e o negócio se sustentava.” Durante os cinco anos em que administrou o Peter Cat, Murakami escreveu seu primeiro romance. O único motivo pelo qual não abandonou o desgastante trabalho na gastronomia antes foi simples: “Ele me permitia ouvir jazz do amanhecer ao anoitecer.”

Uma seleção pessoal

Mais de 40 anos após esse primeiro contato com o jazz, Haruki Murakami decidiu compartilhar sua paixão com os leitores no livro Retratos de Jazz (Tusquets, 2025), uma coletânea de perfis biográficos de grandes músicos do gênero, ilustrados pelas pinturas do artista japonês Makoto Wada.

Nascido em 1936, Wada desenvolveu sua paixão pelo jazz depois de assistir ao filme Nace una canción (A Song is Born), estrelado por Danny Kaye e com participações de nomes como Benny Goodman, Tommy Dorsey, Louis Armstrong e Lionel Hampton. O enredo da produção girava em torno de um professor de música clássica, inicialmente avesso ao jazz, mas que acaba se rendendo ao gênero. Essa história foi a centelha que acendeu em Wada o amor por essa música, que mais tarde inspiraria parte de sua obra. Em uma de suas exposições, o artista criou retratos de músicos de jazz, que foram acompanhados por textos de Murakami sobre cada um dos personagens retratados.

“Pelo que sei, antes de escrever sobre um músico, Murakami ouvia vários de seus discos”, contou Wada, falecido em 2019, no epílogo de Retratos de Jazz. “Meu processo de trabalho era semelhante: também eu escutava algumas gravações antes de pintar. As referências fotográficas não bastam. Não é suficiente que o rosto no desenho se pareça com o original. É necessário algo mais. E, para isso, serve a música.”

O resultado dessa colaboração entre escritor e pintor é um livro tão belo quanto cativante. Em vez de apenas listar dados biográficos dos artistas – entre os quais Billie Holiday, Miles Davis, Bill Evans, Stan Getz, Lester Young, Duke Ellington, Lee Morgan e Ella Fitzgerald –, Murakami entrelaça essas informações com suas próprias memórias e reflexões. Dessa forma, o leitor que não está familiarizado com o jazz pode se interessar pelo gênero, enquanto os já aficionados podem redescobrir músicos e gravações sob novas perspectivas.

Um dos diferenciais do livro é que cada perfil biográfico vem acompanhado de uma recomendação musical. Murakami seleciona um disco de sua coleção pessoal que, em sua opinião, melhor representa a trajetória do artista – seja por uma composição marcante, pelo envolvimento de músicos específicos, por abrir novas possibilidades ao gênero ou, simplesmente, por despertar uma lembrança especial no autor. Um exemplo disso é Pithecanthropus Erectus, de Charles Mingus.

“No meu segundo ano de universidade, trabalhei no turno da noite em um restaurante modesto no bairro de Kabukicho, em Shinjuku. Respirava o ar viciado do local das dez da noite até as cinco da manhã, quando voltava para casa junto com bêbados que haviam perdido o último trem da noite anterior”, recorda Murakami. Não muito longe do restaurante, havia um pequeno bar de jazz chamado Pithecanthropus Erectus, em homenagem ao disco de Mingus. “O bar ficava aberto até de madrugada, então eu costumava ir para lá nos meus intervalos. Não me lembro se cheguei a ouvir Pithecanthropus Erectus nesse bar, mas, toda vez que escuto o disco, sou transportado mentalmente para Kabukicho, em Shinjuku, no inverno.”

Embora algumas escolhas musicais do escritor sejam previsíveis – como Waltz for Debby, de Bill Evans; Sidewinder, de Lee Morgan; Song for My Father, de Horace Silver; e Concorde, do Modern Jazz Quartet –, outras são extremamente pessoais e inesperadas. Esse detalhe faz de Retratos de Jazz um contraponto valioso às extensas guias especializadas, onde críticos de revistas como DownBeat ou Jazz Times determinam quais álbuns são os mais essenciais do gênero.

Para quem tem curiosidade sobre as escolhas de Murakami, um exemplo de sua seleção pessoal é:

  1. The Bridge, de Sonny Rollins.
  2. “Entre seus álbuns, o que mais gosto de ouvir é The Bridge, gravado e lançado logo após seu retorno à atividade, após o período sabático mais longo […] Talvez não seja sua obra-prima, mas me estimula e me dá forças de uma maneira difícil de explicar, com uma energia que chega direto ao coração.”
  3. Homecoming, de Dexter Gordon
    “O Dexter Gordon da sua última fase, porém, nunca me atraiu: na minha mente, ele continuava sendo aquele jovem saxofonista cheio de energia, que já não tinha muito a ver com o Gordon mais maduro […] Apesar do que foi dito —e para minha surpresa—, escolho um disco gravado ao vivo em 1976 pela gravadora Columbia, embora eu possa apontar muitos outros álbuns dele com maior qualidade técnica e interpretativa. Por que este, então, após tudo o que expus acima? Porque admiro a virada filosófica do Dexter Gordon eremita.”
  4. Windows Opened, de Herbie Mann
    “É uma seleção de faixas de sucesso dos anos 60 (compostas por artistas como Wayne Shorter e Charles Tolliver), regravadas com uma abordagem bem diferente da original e muito agradáveis de ouvir. Em especial, a interpretação de Miroslav Vitous no contrabaixo, cheia de força e frescor, e que, ao ser ouvida hoje, me lembra que o que importa é se estamos ouvindo um disco de jazz sério ou comercial. Se gostamos dele, o que mais importa?”
  5. Town Hall, de Ornette Coleman
    The Shape of Jazz to Come, lançado pela Atlantic, é, na minha opinião atual, o disco mais coeso e sólido dele; o de maior qualidade, no fim das contas. Inclui o célebre tema Lonely Woman. No entanto, o que eu mais gosto é Town Hall Concert, lançado pelo selo ESP em 1962.”
  6. By Monk By 5, de Thelonious Monk
    “Eu havia ido comprar Prestige, de Red Garland. ‘Como é que um garoto tão jovem como você se interessa por um disco tão chato?’, me perguntou o velho dono da loja. ‘Por que não leva esse e ouve com mais atenção?’ Sem muita vontade, acabei levando quase que à força […] No entanto, depois de ouvi-lo, tive que admitir que ele estava certo. Coloquei-o várias vezes e nunca me cansava dele.”

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